Correio Braziliense - 19/05/2010
Brasil desafia os EUA
Queda de braço
Um dia depois de Brasil e Turquia fecharem acordo com o Irã para a troca de urânio enriquecido, Estados Unidos levam projeto de sanções ao Conselho de Segurança. Embaixadora brasileira abandona a reunião
No dia seguinte ao anúncio do acordo conseguido pelos governos brasileiro e turco sobre a troca de urânio iraniano, Estados Unidos e Brasil ensaiavam ontem uma queda de braço no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Washington ignorou o avanço obtido e convocou uma reunião de emergência para discutir o rascunho de um projeto estabelecendo mais uma rodada de sanções ao Irã. O texto tem 10 páginas e, segundo a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, teria sido aceito pela China e pela Rússia. Ele prevê restrições até ao Banco Central do Irã.
A representante do Brasil, que ocupa uma cadeira não permanente no conselho, abandonou a reunião. “O Brasil não vai participar neste momento, porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante”, disse a embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti. Na mesma hora, em Brasília, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmava à imprensa que “não colocaram na balança as coisas que o Lula falou”. O chanceler brasileiro negou, no entanto, que o acordo fechado pelos três países tenha sido “ignorado” pelo grupo “cinco mais um” (EUA, França, Reino Unido(1), Rússia, China e Alemanha). Sobre as sanções, o ministro afirmou que, se for apresentada uma resolução com esse teor, “haverá uma reação” do Brasil.
Amorim e o colega turco, Ahmet Davutoglu, estão redigindo uma carta para enviar aos membros do Conselho de Segurança, na qual ressaltarão que a base do acordo assinado domingo é a própria proposta apresentada pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) no ano passado. “É o acordo que eles propuseram”. Para o chanceler, não há razões para duvidar de que o programa nuclear do Irã tenha objetivos civis, embora “às vezes erremos ao julgar as intenções do outro”. “Até os namorados às vezes desconfiam”, comparou.
Jogo duro
O rascunho levado pelos EUA ao conselho propõe que os países-membros proíbam a abertura de novas agências ou escritórios de representação de bancos iranianos que estejam “vinculados a atividades de proliferação nuclear”. Também exige vigilância sobre as transações bancárias, inclusive do Banco Central do Irã, para “evitar que contribuam para a proliferação de atividades nucleares sensíveis ou para o desenvolvimento de sistemas para o lançamento de armas atômicas”.
O texto prevê inspeções em navios “suspeitos” de transportar cargas relacionadas ao programa nuclear iraniano. Porém, segundo a agência chinesa Xinhua, que cita “fontes diplomáticas”, o rascunho “reflete uma estratégia de duas vias” e abre uma brecha para negociações ao “apoiar e encorajar os esforços diplomáticos”.
Mais cedo, na Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, Hillary anunciara um acordo sobre as sanções com China e Rússia. Segundo a secretária, seria uma “resposta convincente” aos esforços realizados no Irã durante os últimos dias. “Ainda há uma série de perguntas sem resposta sobre o anúncio que veio de Teerã. (…) O grupo cinco mais um e a União Europeia estão reunindo a comunidade internacional em nome de uma resolução com sanções fortes, que envie uma mensagem inequívoca sobre o que se espera do Irã.”
O assessor do presidente Lula para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, disse em Madri que a decisão de insistir nas punições colocaria os EUA em má situação. “Se optarem pela sanção, vão se dar mal. Vão sofrer uma sanção moral e política”, afirmou. Ele ainda sugeriu que o “normal e desejável” seria que Brasil e Turquia se reunissem com o grupo “cinco mais um”.
1 - Embaixador faz ressalvas
Em Brasília, o embaixador do Reino Unido, Alan Charlton, disse que o acordo entre Irã, Brasil e Turquia é “bem-vindo”, mas o caminho até uma solução de fato “ainda é bastante longo”. “O próximo passo deve ser o contato do Irã com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). E tem vários outros pontos a serem discutidos; por exemplo, nós acreditamos que o Irã continua a enriquecer urânio”, afirmou. Charlton lembrou que a ideia da troca foi da própria AIEA, para “dar mais confiança para a comunidade internacional”. Ele, no entanto, destacou o papel desempenhado pelos dois países em desenvolvimento. “A Turquia e o Brasil são parceiros muito importantes da Europa e dos Estados Unidos, e há um papel para cada país nessas questões”. O embaixador ainda garantiu que o Reino Unido “sempre apoiou a ideia de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança”, e que isso não mudará com o novo governo britânico.
O grupo ‘cinco mais um’ e a União Europeia estão reunindo a comunidade internacional em nome de uma resolução com sanções fortes”
Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana
O Brasil não vai participar neste momento, porque sentimos que existe uma nova situação. Houve um acordo muito importante”
Maria Luiza Ribeiro Viotti, representante do Brasil na ONU
Veja os principais pontos do projeto de resolução apresentado pelos EUA
Teerã tem pressa
O governo do Irã declarou ontem que vai informar a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) sobre a proposta firmada com o Brasil e a Turquia “por escrito, pelos canais habituais”. O regime de Teerã, entretanto, pediu que EUA, França, Rússia e a própria AIEA, que compõem o Grupo de Viena, “apresentem rapidamente” disponibilidade para aprovar a troca do urânio iraniano via Turquia. “Uma vez assinado, o acordo vai preparar terreno para uma cooperação nuclear mais ampla e mudará o clima entre o Irã e as grandes potências”, disse o porta-voz da chancelaria iraniana, Ramin Mehmanparast.
No Irã, a receptividade ao acordo também foi maior do que se esperava. O presidente do Majilis (Parlamento), Ali Larijani, que em outubro passado foi contrário à proposta do grupo de Viena, apoiou o texto anunciado na segunda-feira, que prevê a troca de 1.200kg de urânio levemente enriquecido por 120kg de combustível a 20%. “É necessário que as posições de todos se aproximem e que os países se comprometam em uma só voz com esse caminho justo”, declarou Larijani, um político muito próximo ao líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei. Classificado como um “conservador pragmático”, ele já foi o chefe dos negociadores iranianos para a questão nuclear.
De acordo com a agência iraniana Irna, 234 dos 290 deputados do Majlis assinaram um comunicado de apoio ao acordo entre Irã, Brasil e Turquia. O gesto confirma que mesmo a oposição reformista, que contesta a legitimidade do presidente Mahmud Ahmadinejad, cerra fileiras em defesa do que considera um direito do país. “A atividade nuclear pacífica é considerada um patrimônio nacional, e cabe a todo o povo iraniano protegê-la”, diz o texto. Os parlamentares apresentam o acordo de Teerã como “base positiva” para o diálogo, e acusa a “arrogância global” — termo usado no Irã para referir-se às grandes potências em geral, e aos EUA em particular — de tentar “desviar a nação iraniana de seu caminho reto”.


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