25 de maio de 2009

"ATIVISMO JUDICIAL" PRA BOM ENTENDEDOR

por Guilherme Guimarães Feliciano - Folha de S. Paulo - 25/05/2009


Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado

EM EDITORIAL do dia 5/4, esta Folha teceu considerações no mínimo inquietantes sobre as decisões liminares proferidas pelo presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Embraer) e pelo vice-presidente do TRT da 3ª Região (Usiminas), ambas condicionando a formalização de dispensas massivas e abruptas de trabalhadores à prévia tentativa de negociação e à apresentação de balanços patrimoniais.Outros órgãos de imprensa têm criticado abertamente o que denominam "ativismo judicial". Em resumo, censuram-se tais decisões porque, baseadas isoladamente em princípios constitucionais, disseminariam insegurança jurídica, com intervenções abusivas na liberdade de iniciativa.Na realidade, decisões judiciais que condicionam dispensas coletivas à prévia negociação coletiva e à demonstração contábil das alegadas dificuldades econômico-financeiras não radicam "apenas" nas ideias de dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho.O artigo 7º, I, da Constituição dispõe explicitamente ser direito dos trabalhadores urbanos e rurais a "relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos".Mas não é só. A Constituição é bem clara ao dispor que a tal "indenização compensatória" é apenas uma das garantias gerais do empregado contra as dispensas arbitrárias (ainda que não sejam propriamente abusivas); e, tratando-se aqui de direitos sociais fundamentais, vale sempre invocar a norma do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem os outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados".Ora, se a própria Constituição autoriza o reconhecimento de direitos decorrentes dos princípios perfilhados pelo sistema jurídico brasileiro -entre os quais o da dignidade da pessoa humana, o do valor social do trabalho e o da vedação do abuso de direito (veja-se o artigo 187 do Código Civil)-, qual a impropriedade de julgar com base em tais princípios, derivando deles condicionalidades que, se não previstas textualmente na lei ordinária, estão em consonância com o sistema constitucional?Alguém dirá que uma dispensa coletiva promovida só para aumentar ou preservar a margem de lucro da empresa, sem nenhuma transigência com o valor-trabalho e a pretexto de uma crise mundial econômico-financeira -mas com perdas que não se documentam- não exala abusividade? E, se é abusiva, não vai além da mera "dispensa arbitrária" (à qual tem direito o empregador individual), desafiando o controle da Justiça do Trabalho?Aliás, quando se diz que tais decisões promovem "intervenção abusiva" na liberdade de iniciativa e de empreendimento, não se está a esgrimir exatamente um princípio, inserto no artigo 170 da Constituição? Por que, então, o horror aos princípios?Em verdade, o que há naqueles julgados não é viés ideológico ou "ativismo" de qualquer ordem. É, sim, uma inexorável mudança de perspectiva.Já não se pode mais interpretar a Constituição pelas lentes míopes das leis, como se o legislador fosse o único intérprete autorizado do texto constitucional. Manda a hermenêutica contemporânea, libertada dos arreios do positivismo jurídico (e diz-se dela, por isso mesmo, ser "pós-positivista"), que se interpretem as leis conforme a Constituição; não o contrário.Eis aqui, altaneiro, o princípio da supremacia da Constituição, festejado aos quatro ventos desde a célebre sentença do juiz Marshall no caso Marbury x Madison. Se a lei é contrária à Constituição, deve ser expungida do sistema; se a lei admite variegadas interpretações, deve-se optar pela interpretação conforme a Constituição; se a lei é lacunosa, deve-se completá-la com os princípios constitucionais.Tudo isso mais os olhos atentos à realidade social e à sua contextualidade, porque o Direito não se exaure nos textos. Tampouco aqui se revelam quaisquer novidades. Cuida-se daquilo que o jurista português Menezes Cordeiro identificou, há mais de uma década, como integração vertical: a montante, o pré-entendimento do magistrado; a jusante, a análise dos fatos sociais ao seu redor. Sem tal norte, a Justiça claudicaAliás, considerando que Marbury x Madison é de 1803, não há, naqueles dois julgados, absolutamente nada de revolucionário, neossocialista ou "ativista". Há, sim, boa técnica. Bom senso. E boa dose de coragem.

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