14 de junho de 2010

RECEITA PODE LEVAR CALOTE DE R$ 1,8 BI



Autor(es): Marcone Gonçalves

Correio Braziliense - 14/06/2010

Calote coreano chega a R$ 1,8 bi

Receita pode levar calote

 
Jogo de empurra entre a Kia e a Asia Motors lesa a Receita Federal em uma quantia suficiente para construir 40 mil casas
Um dos mais rumorosos casos do mundo dos negócios envolvendo prisões no Brasil e no exterior, tráfico de influência e uma dívida de R$ 1,8 bilhão junto à Receita Federal está prestes a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por trás da sentença, pode estar um dos maiores golpes empresariais da história do país, no qual a companhia coreana Kia Motors Corporation alega ter sido vítima de dois empresários brasileiros e um coreano.

Por enquanto, o único verdadeiro prejudicado é o governo, que deixou de receber um valor suficiente para construir 40 mil casas populares. Como ninguém admite pagá-la, a dívida fiscal ameaça virar pó, assim como ocorreu com a promessa de milhares de empregos, especialmente na Bahia, onde seria instalada uma fábrica da montadora coreana.

O processo, que tramita na Justiça há quase uma década, oferece exemplos de gangsterismo, por meio de golpes que combinam oportunismo, leis frouxas e controles ineficientes de uma administração pública lerda. Não é à toa que, na defesa e na acusação, atuam dois dos maiores escritórios de advocacia do país, o de Sérgio Bermudes e o de Arnold Wald.

No centro do imbróglio está o coreano Chong Jin Jeon, que vivia no Brasil e era um dos donos de 49% da Asia Motors do Brasil (AMB), com os brasileiros Washington Armênio Lopes e Roberto Uchoa Neto. Em meados dos anos 1990, os três empresários formaram uma joint-venture com a Kia Motors e aproveitaram as benesses concedidas pelo recém-lançado regime automotivo para despejar no mercado mais de 70 mil vans Towner e Topic.

Os veículos eram importados com desconto de 50% nos impostos. Tal benefício fiscal estava condicionado, porém, à construção de uma fábrica no Brasil, projeto que foi anunciado, mas jamais saiu do papel. Por isso, o governo brasileiro quer de volta os impostos não pagos, cujo valor inicial inscrito na dívida ativa da União em 2003 era de US$ 217 milhões. Atualmente, por causa das multas e juros, o valor já ultrapassa US$ 1 bilhão, segundo um representante da Kia Motors.

Árbitro externo
Quem já atrasou o pagamento de uma conta de IPVA ou IPTU deve achar surpreendente o fato de essa dívida fabulosa não ter dono até agora. Ocorre que a Kia Motors e os empresários brasileiros culpam uns aos outros pelo fato de a fábrica na Bahia(1) ter ficado na promessa. Para os donos da Asia Motors do Brasil, a Kia e a sua controladora desde 1998, a Hyundai, são responsáveis pelo débito por terem desistido da unidade brasileira.

Os coreanos, por sua vez, alegam que jamais assumiram, de fato, o controle do empreendimento, mesmo quando aportaram mais de US$ 250 milhões na Asia Motors do Brasil. De acordo com a Kia, os empresários brasileiros simplesmente embolsaram o dinheiro e se mantiveram donos da empresa no país, algo que inviabilizaria a sua entrada por aqui. “Não foi a Kia que fez as importações dos veículos. A Kia foi impedida de construir a fábrica porque não recebeu o controle do empreendimento”, afirma Daniel Cho, representante da empresa no Brasil.

Para se livrar da megadívida com a Receita, a Kia espera que o STJ homologue a sentença do Tribunal Arbitral Internacional que a favoreceu. Se isso ocorrer, a empresa promete que, desta vez, aplicará o mesmo US$ 1 bilhão para instalar uma fábrica no Brasil.

1 - Tema presidencial
Dois presidentes da República se envolveram, direta ou indiretamente, na disputa entre a Kia e a Asia Motors. Em 1998, Fernando Henrique Cardoso participou do lançamento da pedra inaugural da prometida fábrica das montadoras na Bahia — no local, funciona uma unidade da Ford. Menos de 10 anos depois, em 2007, Lula inaugurou a fábrica da Hyundai, controladora da Kia, em Anápolis (GO), a 160 quilômetros de Brasília.

Benefícios continuam

A despeito de o crime fiscal estar mais do que comprovado na disputa entre a Kia Motors e a Asia Motors dentro do regime automotivo brasileiro, política lançada no governo Fernando Henrique e mantida pela gestão Lula, ninguém até agora foi condenado no Brasil. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o processo está, depois de dezenas de despachos, intimações e petições, nas mãos da ministra Maria Thereza de Assis Moura. Especialista em questões penais, ela é considerada uma das mais duras magistradas do Judiciário. No entanto, a ministra tem enfrentado as dificuldades de um processo que é moroso tanto por causa das inúmeras petições dos advogados — muitas delas, protelatórias — quanto pelo fato de envolver pessoas e empresas residentes no exterior.

No Brasil, o empresário Washington Armênio Lopes, um dos acionistas da Asia Motors, continua operando no ramo. Agora, ele se apresenta como dono da IVC importadora de veículos. No mês passado, trouxe a Brasília uma comitiva de uma província chinesa para discutir com Michel Temer, presidente da Câmara dos Deputados e vice da chapa presidencial liderada pela petista Dilma Rousseff, a instalação de uma fábrica de bicicletas na Amazônia e uma montadora em local a ser definido. Procurado pelo Correio por meio de seus advogados, Lopes não se manifestou. Seu ex-sócio na Asia Motors, Roberto Uchoa Neto, não foi localizado.

Já o coreano Chong Jim Jeon, o terceiro integrante da Asia Motors, não ficou impune. Condenado na Coreia por estelionato e fraudes financeiras, foi preso em sua terra natal, mas fugiu para o Brasil em 2001. Aqui, foi para a cadeia em 2006 e ficou sob os cuidados da Polícia Federal até ser extraditado em 2008 para cumprir pena de 10 anos. Enquanto esteve preso no Brasil, Chong alegou ter sido usado como “bode expiatório” numa ação da Hyundai, interessada, segundo ele, no perdão de dívidas do governo coreano. Chegou a declarar que, se fosse mandado para a Coreia, seria morto por “saber demais”.

Por tabela
Segundo Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal, o histórico do caso aponta para que a Hyundai, controladora da Kia Motors, responda solidariamente pela dívida de R$ 1,8 bilhão com governo brasileiro. Maciel, que recusou convites para participar da disputa judicial, assinala que a Receita depende, agora, exclusivamente da Justiça do país para reaver o dinheiro a que tem direito. “A interposição de recursos judiciais suspende a exigibilidade do crédito. O fato de o contribuinte ter a demanda judicial prejudica a cobrança administrativa”, explica.

Um tributarista ouvido pelo Correio, que preferiu não se identificar, também diz que o caso pode afetar a Hyundai em seus pleitos de benefícios fiscais. A quinta maior montadora do mundo abriu uma fábrica em Anápolis (GO) em 2007 e anunciou que pretendia instalar, ainda neste ano, uma unidade em Piracicaba (SP). A crise internacional adiou os projetos, mas o problema maior, segundo o tributarista, é que, enquanto não se define a responsabilidade fiscal da companhia, a dívida bilionária com a Receita “é um elemento impeditivo para que a empresa venha a gozar de isenções ou reduções de impostos no país”

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